ASSÉDIO

Artigo publicado na Revista Manchete do dia 2 de agosto de 1997.

Assédio ou Cantada?

Cresce o número de propostas indecentes em ambientes de trabalho. O pior é que a lei é falha e a maioria não sabe se defender.

Gostosa. Foi tudo o que ela ouviu ao passar apressada por um colega de trabalho. Mas foi o quanto bastou. Suficientemente lisonjeada, voltou para sua mesa sobrecarregada de coisas a fazer, considerando que, afinal, apesar de já passada em anos, suas formas ainda eram merecedoras de elogio. E ganhou o dia.

Esta personagem teria ganho muito mais que um inofensivo porém gratificante elogio, se a cena passasse nos Estados Unidos. Lá, esse tipo de gracejo, além de cadeia, pode custar ao infrator uma milionária indenização à vítima. Se é que os homens por lá ainda se atrevem sequer a admirar o corpo de uma mulher. No Brasil, onde ainda não há leis específicas para punir essa prática e reinar muita desinformação, milhares de pessoas - homens e mulheres - são obrigadas a conviver diariamente com o constrangimento em seus locais de trabalho.

A secretária Maria Inês Pereira Guimarães no início achou que a gentileza de seu chefe no novo emprego na Federação dos Empregados em Estabelecimentos Bancários do Estado do Rio de Janeiro era apenas uma forma de desejar-lhe boas-vindas. "Logo no primeiro dia, ele me convidou para almoçar. No terceiro dia, almoçamos juntos de novo e ele começou a falar de seu relacionamento com as mulheres. A partir daí, passou a me prender no escritório depois do expediente para reuniões extras em que só falava de assuntos pessoais". A ansiedade de ser aceita e aprovada no novo trabalho fez Maria Inês tolerar as investidas, mas depois de alguns dias ela já se dera conta de que estava sofrendo uma violência mais comum do que se pensa no Brasil: o assédio sexual.

"Quando eu chegava no escritório, ele já tinha feito todo meu serviço e dizia 'não precisa fazer nada, só eu olhar para você é um prazer' ". Maria Inês recorreu à direção geral da Federação, que não tomou nenhuma providência, muito menos a de evitar sua demissão no final de três meses de assédio e esquivas.

Revoltada, ela decidiu entrar na justiça contra o chefe, que negou os fatos. Resultado: não houve punição. Apesar de em seu parecer final o juiz reconhecer que houve assédio e que Maria Inês não mentiu em nenhum momento, o diretor escapou ileso. "A justiça é machista", desabafa a secretária.

O assédio - tentativa de obter concessões sexuais forçadas valendo-se de uma relação de poder estabelecida- não é previsto em lei no Brasil. Os artigos 146 (constrangimento ilegal) e 214 (atentado violento ao pudor) do Código Penal, entretanto, servem para enquadrar o assediador. Mas poucos casos chegam aos tribunais, seja por desinformação ou medo da vítima ou porque é feito um acordo entre as partes.

Sem conhecer seus direitos, a empregada doméstica Rosamaria Silva foi vítima do patrão. Durante três anos, ela teve que suportar humilhações e agressões verbais. "Ele esperava a esposa sair e me falava coisas horríveis no ouvido. Ficava só de cueca na minha frente e dizia que se contasse alguma coisa à mulher dele, ia me acusar de roubo e me mandar embora na hora". Detalhe: o assediador é advogado e sabia muito bem o crime que estava praticando.

Sob influência da legislação americana - onde a discussão do assédio ameaça descambar para a paranóia coletiva -, dois projetos de lei, uma da deputada federal Martha Suplicy e outro da senadora Benedita da Silva, visam a caracterizar a prática como crime. Pura perda de tempo, segundo o vice-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Fernando Fragoso. Para ele, não há necessidade de se criar uma lei específica para o assédio. " A simples ameaça de uma pena criminal jamais serviu de freio de inibição ao autor potencial do delito", afirma o criminalista. Ele também discorda das penas sugeridas nos projetos. "São demasiadamente altas, podendo chegar a oito anos, enquanto o autor de uma morte no trânsito pega no máximo três anos. Queremos fora da cadeia quem nela não precisa estar".

As mulheres são, sem dúvida, as maiores vítimas de assédio.

Entre todas as categorias e profissões, as secretárias lideram as estatísticas. Pesquisa do Sindicato das Secretárias do Estado de São Paulo (Sinsesp), realizada no final de 1995, revelou que 24% das 800 mil profissionais que atuam na maior metrópole do pais já foram assediadas por seus chefes. Segundo o psicólogo Alberto Araújo, 42 anos, diretor do Centro de Atendimento em Assédio Sexual, do Instituto Psyko-Universal, no Planalto Paulista, o assédio pode acontecer quando existe qualquer relação de poder, como professor-aluno ou médico-paciente, mas também se houver relação de força - o assediador intimida sua vítima com uma arma na mão, por exemplo.

Uma modelo e atriz de 23 anos, que prefere ocultar sua identidade, acabou se queimando. Morena-jambo e dona de um físico invejável, ela sonhava com uma carreira na TV. Convidada para posar nua, sempre recusou, "para não decepcionar os pais".

Em 1995, passou num teste para integrar o elenco de uma novela das oito, mas a alegria durou poucas semanas. "O diretor me chamou na sala e disse que o futuro do meu personagem estava nas minhas próprias mãos. Ou dormia com ele ou saía da novela". À recusa categórica da atriz principiante, o todo-poderoso reagiu com a morte de seu personagem num incêndio tão criminoso tal qual a sua proposta indecente.

Este tipo de situação pode provocar alterações comportamentais como irritabilidade e desequilíbrio emocional. "O nível de estresse é muito agudo e aumenta com a insistência do assediador, às vezes a assediada precisa de meses para se recuperar", diz o psicólogo Araújo. Como o assédio influi negativamente na produtividade das empresas, algumas delas começam a promover seminários explicativos. "A maioria dos empresários não sabe lidar com a situação. O bate-boca na Justiça beira os limites do ridículo. Os homens se defendem dizendo que 'só alisaram o cabelo da colega e que tudo não passou de uma brincadeira'. É bom esclarecer que isto é assédio", diz.

A jornalista S.O., por exemplo, se lembra até hoje do pacote que recebeu de seu chefe, em 1995, com roupas íntimas de renda. No dia anterior, ele lhe emprestara o equivalente a R$ 3 mil. "Quando abri, fiquei chocada. Não teve coragem de me dizer pessoalmente e escreveu no cartão que a dívida estaria perdoada caso eu topasse passar aquela noite com ele". O chefe da jornalista não só a tirou do trabalho como tratou de difamá-la com outros colegas.

Ela poderia ter preservado seu emprego se uma novidade sindical já existisse na época. A Central Única dos Trabalhadores (CUT) incluiu uma cláusula referente ao assédio na sua proposta de dissídios. "Fica vedada qualquer prática de assédio e garantido o emprego e o salário à vítima por doze meses após a denúncia, assim como acompanhamento jurídico", diz a pauta da CUT. A garantia do cargo se explica pelo fato de grande parte das pessoas que denunciam o assédio, principalmente contra pessoas de cargos superiores, acabar perdendo o emprego.

Para Regina Leme, mestre em Sexologia e funcionária do Centro de Educação Sexual (CEDUS), no Rio de Janeiro, a tendência do assédio sexual é aumentar, em todas as esferas da sociedade, porque o homem não aprendeu a lidar com a emancipação da mulher nos últimos 20 anos. "O mais perverso é que algumas mulheres também assumem esta posição machista. E muitas delas acreditam ser culpadas por vestir esta ou aquela roupa.

Nossa cultura ensina que o homem que não corteja não é macho", afirma. É bom lembrar que a manifestação mais radical do assédio, o estupro, vem crescendo nas estatísticas das polícias de todos os estados do país.

A atriz Mary Mallandro sofreu um assédio que quase se transforma em violência sexual por parte de um diretor de programa. Foram três meses de angústia com as investidas.

"Como eu me fazia de boba, ele começou a ficar nervoso". Depois de muito resistir, ela descobriu que sofrera represália: ao pegar um novo roteiro de gravação, viu que de protagonista tinha passado a interpretar a namorada de um coadjuvante. A perseguição começara. Mais de quatro vezes Mary trocou de quarto no hotel onde estavam hospedados, na tentativa de driblar o diretor. A história acabou com uma quase tentativa de agressão, evitada por um cameraman. "Se o câmera não tivesse chegado a tempo, ele teria rasgado minhas roupas". Mary entrou na justiça, mas perdeu.

Assédio também pode ser homossexual. Como no caso de um engenheiro que em 1989 era assistente num projeto de uma grande companhia de petróleo. Subordinado a um diretor homossexual, ele foi assediado e disse não. Perdeu a chance de ser efetivado e teve suas idéias para o projeto roubadas. Por bilhetes e telefonemas, o engenheiro de viu constrangido por semanas. A mensagem era sempre a mesma: "Nada disto teria acontecido se você tivesse me dito sim".

Colaborou, Vera Gertel e Roberta Akan, SP

Escândalo na Casa Branca

A marca da água

O presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, está em maus lençóis. Acusado de assédio sexual por Paula Jones, uma ex-funcionária pública de Arkansas, ele está se explicando na Justiça sobre o que aconteceu na noite de 8 de maio de 1991. Segundo Paula, Clinton, então governador do Estado, a convidou para uma suíte do Hotel Excelsior, em Litlle Rock. Ao chegar ao local, ela foi surpreendida: Clinton teria aberto a braguilha e lhe pediu que lhe fizesse sexo oral. "Não sou quem o senhor está pensando", teria dito antes de fugir. Paula exige agora uma indenização de U$ 750 mil por danos morais.

O poder do homem mais importante do mundo, entretanto foi suficiente para manobrar a Suprema Corte dos Estados Unidos. Os magistrados decidiram que, antes de ser presidente, ele é um cidadão e vai responder pela acusação. A única concessão feita é o local de seu depoimento. Será ouvido em seu gabinete na Casa Branca. Paula promete revelar no processo um detalhe original da genitália presidencial. As más-línguas dizem que é uma tatuagem de águia que Clinton teria feito nos seus tempos de hippie.