Publicado na Revista Carta Capital de número 135 - 8 de novembro
Prática de submeter candidatos a emprego a situações constrangedoras sugere psicologismo pervertido e expõe traços patológicos da cultura empresarial
por Thomaz Wood Jr.
(professor na EAESP/FGV e autor de "Os 7 pecados do capital")
twood@fgvsp.br
Organizações não são redutos de anjos, onde se cultivam virtudes e bem querências. Mas também não é preciso exagerar! Em algumas grandes empresas, parece que a indigência moral está crescendo proporcionalmente ao ego e à incontinência verbal dos executivos. Alguns exemplos a seguir ilustram o ponto em questão. Como poderá ser constatado, a linha divisória entre condutas aceitáveis e inaceitáveis está sendo ultrapassada em quilômetros, não raro com justificativas pescadas no mais raso e pervertido psicologismo.
Cena 1: sala da diretoria de um conhecido banco de investimentos. Edifício novo, andar alto, vista para mansões suspensas e Singapuras. A decoração tem grife, os quadros tem assinaturas famosas e os executivos tem pedigree assinado no exterior. Quanto bom gosto! Cultura paga a vista, com cheque das Ilhas Cayman. Carlos (nome fictício) está na última etapa do processo de seleção. Recém formado, sonha com uma vaga de trainee. Entra com tanta segurança quanto seus 21 anos permitem. À sua frente, os diretores do banco o examinam com displicência. Um deles lhe sorri menos que simpaticamente, apontando uma poltrona. Carlos faz menção de sentar quando um dos diretores o interrompe bruscamente: - Não, você não! Você tem cara de cheirador de coca. Carlos se perfila espantado. Os outros se mantém impassíveis, como se nada houvesse. - O Sr. deve ter me confundido com outra pessoa, gagueja o jovem candidato. Passado o constrangimento inicial, a entrevista continua.
Cena 2: Carolina (nome fictício) está sendo entrevistada por um executivo de uma renomada multinacional. A conversa segue pela trilha usual: experiência anterior, perspectivas e ambições (- Sim, senhor! Meu sonho sempre foi trabalhar na sua empresa, desde pequenininha). De repente, o tom muda: - querida, será que eu poderia checar se a alça do seu sutiã não está suja? Momento de silêncio. O executivo continua: - Carol, vamos ser prático. Até onde você seria capaz de chegar para conseguir este emprego? Carolina deixa a cena, anestesiada. Desce o pano.
Cena 3: Takeshi (nome fictício) tem uma semana movimentada. Com dificuldades, administra a agenda para participar de três processos simultâneos de seleção. Quarta-feira, final poluído de tarde, aguarda para ser atendido por um vice-presidente. Enquanto folheia revistas na sala de espera, acompanha fragmentos das atividades das secretárias. A conversa gira em torno de temas clássicos da vida executiva: sais de banho, a viajem da filha mais jovem a Tailândia e a renovação do seguro do Volvo. Nada como a vida no topo! Finalmente, Takeshi é atendido. O executivo o recebe com um sorriso de atendente de companhia aérea e pede que se sente. Então, coloca-se a sua frente, olha-o fixamente nos olhos e dispara: - E aí, japonês, você tem mantido relações homossexuais ultimamente? Bem, este escriba deve confessar que os termos não foram exatamente estes, mas a frase original seria definitivamente inadequada para esta revista.
Padrão de conduta. O que tudo isso significa? Haverá algo além de mau gosto e indigência moral? Ou serão estes três Eventos/Cursos significativos do avanço das "modernas técnicas de recrutamento e seleção"? Serão sinais do famoso RH estratégico em ação? Como diria o britânico James Bond: "uma vez é acaso, duas é coincidência, três é ação inimiga".
Um colega certa vez ouviu de um desses portentosos que habitam as áreas de recursos humanos que se trata de técnicas para avaliar a capacidade dos candidatos de responder a situações de estresse. A explicação faz sentido, especialmente para aquele grupo de ávidos consumidores de orelhas de livros de psicologia e leitores costumeiros das obras de Roberto Shiniashiki e Lair Ribeiro. Certamente foi um membro desse clube de raros que, num processo de seleção, descartou um dos candidatos por causa de sua (do candidato) fixação pelo pênis. Indagado pelos colegas como tinha descoberto tal faceta, devolveu sem pestanejar: - ele não parou de brincar com a caneta durante toda a entrevista!
Assédio moral. Mas nem todos consideram os casos narrados no início do texto como exemplares do avanço das técnicas de seleção. Segundo alguns pesquisadores, os casos talvez façam parte de um fenômeno maior, mundial, conhecido como assédio moral. Na verdade, não se trata de assunto novo. O que é novidade é a denúncia de situações como as mencionadas e a popularidade que o tema vem ganhando.
Uma das primeiras obras a tratar do tema foi provavelmente "Mobbing: la persécution au travail" (Paris: Seuil, 1996), na qual o suíço Heinz Leymann, um psicólogo organizacional, identifica o comportamento que denominou "psicoterror", um esforço sistemático de desqualificação de uma pessoa por outra. Dois anos após foi publicada "Le harcèlement moral: la violence perverse au quotidien (Paris, Syros, 1998), obra da psicanalista francesa Marie-France Hirigoyen que se tornou best seller, popularizando definitivamente o tema. Suas idéias inspiraram a Revista Rebondir (edição número 85, de junho de 2000) a realizar uma pesquisa entre 471 profissionais franceses. Resultado: um de cada três respondentes declarou que já foi vítima de algum tipo de assédio. Comportamentos mais comuns: insultos, humilhações, deboches e isolamento.
Nos Estados Unidos, o fenômeno ganhou espaço acadêmico e já constitui área de estudo, denominada "vitimologia". Os ecos atingiram Terra Brasilis, onde a pesquisadora e professora Maria Ester de Freitas, da EAESP/FGV, prepara um texto a respeito, relacionando o tema à cultura local. Segundo a pesquisadora, algumas empresas apresentam-se como baluartes da ética e das boas condutas, vão até as faculdades e seduzem os alunos com seu discurso moderninho de valorização do ser humano. Porém, no decorrer do processo de seleção uma outra realidade vem à tona. Então os candidatos são desqualificados até o limite.
Perversidade tolerada. Qual a razão desses comportamentos? O despreparo e a mais simples grosseria talvez expliquem parte da história. Mas algumas empresas realmente cheiram a enxofre. Impera o sadismo (e o masoquismo, talvez complementem alguns leitores). O que mais espanta é a tolerância geral, como se tais comportamentos fossem absolutamente naturais. Ainda segundo Maria Ester de Freitas, quando uma empresa opta por métodos similares aos narrados já no processo de seleção, não é preciso grande esforço para imaginar o comportamento habitual no ambiente de trabalho.
De fato, no dia a dia enfrentamos situações de extrema violência psíquica. Eventualmente, sob o pretexto da tolerância, nos tornamos complacentes e omissos. Não falamos de perversidade. Entretanto, as agressões alimentam um processo inconsciente de destruição psicológica, um processo cheio de procedimentos hostis, alguns evidentes, outros camuflados, na forma de palavras, gestos e comportamentos, que efetivamente podem desestabilizar e destruir. Ao final, o agressor sente-se engrandecido, sem pesar nem culpa.
Discurso e prática. Empresas constituem arenas privilegiadas para disputas políticas, conchavos e "puxadas de tapete". Em algumas organizações, a competição entre pares é incentivada. Cultua-se o individualismo a acredita-se que a disputa - nem sempre limpa - aumenta a eficiência geral do sistema.
O mundo girou, a lusitana rodou e este modelo parece cada vez mais questionável. Hoje, as palavras de ordem são participação, trabalho em grupo e valorização do indivíduo. Em Terra Brasilis, aqui e ali, houve-se até falar em ética, responsabilidade social e respeito à diversidade. Mas o discurso demora a virar prática, ou pior, serve de fachada moderna para práticas atrasadas e anacrônicas. Enquanto a dissonância entre discurso e prática leva a situações difíceis de digerir, o psicologismo barato dos livros de auto-ajuda empresarial fornece orientação espiritual e conforto. Resultado: a proliferação de idéias absurdas como o gerenciamento do estresse e as práticas de seleção que submetem os candidatos a constrangimentos. Com o tempo, transformamos procedimentos aviltantes em práticas socialmente aceitáveis.
Mal banalizado. Em "A banalização da injustiça social" (Editora FGV, 1999), o psicanalista Chistophe Dejours advoga que desde o início dos anos 80 a sociedade passou a adotar novas formas de reagir à condições sociais antes tidas como inaceitáveis. As reações se atenuaram e a frustração e a indiferença tomaram o lugar da revolta. A tolerância à injustiça cresceu e a aceitação do que era antes intolerável transformou-se em regra do jogo econômico e empresarial.
Para sublinhar seu argumento, Dejours compara o neoliberalismo ao nazismo: embora a análise do sistema nazista quase sempre focalize o comportamento de seus líderes, o sistema não teria sido viável sem a colaboração maciça de seus operadores e executores. Se funcionava tão bem, é porque o povo contribuía em massa. Dejours bebe diretamente na fonte de Hannah Arendt, que afirmava que a "banalização do mal" vinha da supressão da faculdade de pensar criticamente, que acompanhava atos de barbárie. O mal não seria o fruto de uma estratégia diabólica. Bastaria juntas energias e esforços a serviço da eficácia sem refletir sobre seu sentido e sua finalidade. A banalização parece inibir a visão crítica e a conduta moral. Assim, aumenta a tolerância ao sofrimento e à injustiça social.
Como observado no início do texto, os constrangimentos sofridos por Carlos, Carolina e Takeshi talvez constituam apenas acidentes de percurso, que poderiam ser facilmente atribuídos ao azar de terem cruzado com alguns órfãos de Gengis Khan que habitam o topo das pirâmides empresariais tupiniquins. Porém, é muito mais provável que as cenas narradas façam parte de um contexto maior que, infelizmente, muitos de nós já aceita como natural. |