ASSÉDIO

Assédio sexual no trabalho atinge 11% das mulheres brasileiras
Diario de S. Paulo - 12 de outubro de 2003

LUÍS ALFREDO DOLCI
VANESSA PESSOA

Desemprego e humilhação rondam as vítimas, que muitas vezes preferem o silêncio por causa da dificuldade em provar a conduta criminosa do chefe

“Ele vem assediando as funcionárias há bastante tempo, passando a mão em suas nádegas e fazendo convites para que mantenham relação sexual. Certo dia, ele saiu do banheiro da sala com a calça abaixada na altura dos joelhos e pediu que eu tocasse no órgão genital dele. Ele ameaçou me mandar embora”.

O depoimento é de Taís (nome fictício), operária de 31 anos da metalúrgica Matex em Indaiatuba, no interior do estado, e que se revela mais uma vítima do assédio sexual no trabalho. Taís e outras três funcionárias da empresa decidiram romper o silêncio e denunciaram um gerente da metalúrgica à polícia.

O assédio sexual, que é considerado crime no Brasil desde 2001, atinge 11% das trabalhadoras, segundo pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo, que ouviu 2.500 mulheres no país. A advogada trabalhista Sônia Mascaro acredita que o percentual de vítimas é bem maior e se aproxima da estimativa da Organização Internacional do Trabalho (OIT), segundo a qual 52% das trabalhadoras em todo o mundo já sofreram assédio sexual.

As vítimas são jovens, senhoras casadas, divorciadas, de diferentes raças e classes sociais. O assediador, em geral, é de classe mais alta, e usa o poder para chantagear as subalternas em troca de vantagens sexuais. O assédio sexual é o segundo maior problema enfrentado pelas mulheres no ambiente de trabalho, só ficando atrás dos baixos salários, de acordo com a Força Sindical.

“Tive que ouvir do meu chefe que para ficar no emprego teria que dar uma 'saidinha' com ele, senão estaria no olho da rua. Como recusei a proposta, fui demitida”, conta, revoltada, a ex-operadora de telemarketing Alessandra (nome fictício), de 25 anos, que perdeu o emprego por não ceder aos insistentes convites do gerente para levá-la a um motel.

No Brasil, a vítima é quem deve provar que foi assediada, ao contrário do que acontece na Europa. Isso explica porque ainda é pequeno o número de casos que chegam à Justiça.

Após terem feito a denúncia, as quatro operárias da Matex passaram a sofrer pressão de alguns colegas. “Eles disseram que é mentira porque o gerente não teria coragem de passar a mão em mulher feia e velha”, conta Jussara, de 41 anos.

O Sindicato dos Metalúrgicos de Campinas comandou um protesto na semana passada em frente à Matex. O advogado da empresa Rene Marcos Sigrist, que também está representando o gerente, diz que o acusado só vai se pronunciar na Justiça. “Tudo até agora não passa de boato,” diz. Na quarta-feira, as quatro operárias e o gerente terão audiência na Delegacia Regional do Trabalho, em Campinas. “Não acredito que quatro mulheres inventariam a história, cujo resultado pode ser ruim para elas. Ninguém perde tempo com isso”, diz a subdelegada Ana Palmira. O caso também está sendo investigado pela Delegacia de Defesa da Mulher, em Indaiatuba.

Para a ministra Maria Cristina Peduzzi, do Tribunal Superior do Trabalho (TST), é muito difícil para a vítima provar o assédio. “Muitas vezes a mulher prefere sair do emprego do que denunciar o caso, quando não acaba sendo demitida.”

Para ser caracterizado como crime, o assédio sexual precisa ser cometido por um profissional superior na hierarquia dentro do trabalho, que passe a usar o poder para obter vantagens sexuais. A lei prevê pena de um a dois anos de detenção. Isso significa que se um colega de departamento (e não um chefe) fizer um convite sexual, caberá à vítima apenas pedido de indenização por dano moral na Justiça.

--------------------------------------------------------------------------------


“Não sou prostituta”


“Começo a trabalhar na fábrica às 7h15 e muitas vezes tenho de fazer hora extra, a pedido do meu gerente. Quando algum colega da minha seção vai ao banheiro ou precisa sair mais cedo para tomar o ônibus para casa, meu chefe me chama no escritório dele. Ele me pede para conhecê-lo melhor e repete a todo instante que só estou empregada por causa da ajuda dele. Como gerente, ele se aproveita da minha condição de trabalhadora para propor besteiras. Certo dia, ele saiu do banheiro da sala com a calça abaixada na altura dos joelhos e pediu que eu tocasse no órgão dele. Saí correndo do escritório com medo de ser atacada. Não consegui contar o que aconteceu para ninguém. Ele ameaçou me mandar embora, caso alguém soubesse. Meu contrato de trabalho é temporário e vence em dezembro. Por conta disso, ele sempre me diz para pensar bem no pedido dele. O limite estourou no dia em que ele entrou no banheiro feminino da fábrica e me pediu para não gritar. Por sorte, outras colegas de trabalho presenciaram a cena. Foi quando descobri que as demais operárias também eram assediadas há algum tempo. Resolvemos contar tudo ao encarregado, que acabou sendo mandado embora. Nosso patrão não acreditou no caso. Formamos um grupo, mas ao final apenas quatro de nós resolveu denunciar o caso à polícia. Tenho uma filha pequena, cuido da casa, arrumo as coisas do meu marido, dou um duro danado na fábrica e ainda tenho de conviver com a certeza de que ele vai permanecer na empresa e a gente corre o risco de ser demitida. Isso me revolta! O que passei na mão do meu chefe, não desejo a mulher nenhuma. Ele é casado e tem uma filha pequena. Não quero que aconteça com elas o que aconteceu comigo. Não sou prostituta para ser reconhecida no trabalho por sem-vergonhices. Quero justiça e que ele nunca mais trate as mulheres como cachorras.”

--------------------------------------------------------------------------------


“A vergonha é enorme”


“Nos primeiros dias após a denúncia, os colegas da fábrica ficaram do nosso lado. Depois, muita gente passou a tirar sarro da nossa cara. Alguns funcionários dizem que é tudo mentira porque o gerente não teria coragem de passar a mão em mulher feia e velha. O nosso patrão também duvidou da gente. Ele perguntou a cada uma de nós quatro se o gerente chegou a abusar da gente. Me pergunto se é preciso chegar a este ponto para que a empresa tome providências para acabar com isso. Eu gostaria que o gerente fosse ouvido na nossa presença para não restar dúvida. Há um boato na empresa de que ele vai processar a gente por calúnia e que teremos de prestar serviços a ele. A gente já está com a cabeça cheia por causa do que aconteceu e ainda tem de administrar fofocas e mais ameaças. Não há razão para quatro mulheres inventarem uma história como esta. O risco de perdermos o emprego é enorme e a vergonha também. Quero que ele seja afastado do trabalho. Sou sozinha na minha casa, pai e mãe das minhas três filhas. Trabalho o dia inteiro e à noite estudo. Não acho justo ter de ouvir besteiras no meu trabalho do chefe. Ele chegou a propor até dinheiro para sair com ele. Dizia para eu experimentar um homem casado e me ameaçava de ser demitida caso contasse isso para as colegas. Ele trata as mulheres do mesmo jeito que os homens. Ele é um doente. Por diversas vezes tive muito medo de que ele me pegasse à força. O pior é que ele só faz tudo isso porque tem poder na empresa. Ele está aqui há 25 anos e acho difícil que algo aconteça para puni-lo. Nós somos pobres e simples empregadas da fábrica. Eles pensam que nossa denúncia não vai dar em nada, porque somos a corda mais fraca. Existem outras funcionárias que passam pelo mesmo drama, mas que preferem ficar caladas com medo de sofrer retaliação. Mas vamos até o final da história. Outras mulheres devem reclamar.”

--------------------------------------------------------------------------------


“Acreditaram nele”


“Trabalhei seis anos como operadora de telemarketing e, depois de ficar um mês afastada por um problema de tendinite, fui transferida para a área administrativa, em novembro do ano passado. Foi aí que minha vida no trabalho se transformou num inferno. O gerente do setor em que eu trabalhava me chamou um dia na sala dele e disse: 'Você está prestes a ser mandada embora, porque não serve mais para a empresa. Se quiser manter o emprego tem que dar uma saidinha comigo, senão vai para o olho da rua'. Saí chorando da sala dele e fui falar com um colega. Em seguida, ele me viu contando a esse colega que fui assediada. Ele pegou com força no meu braço e disse que eu ia pagar caro por ter contado o que aconteceu. Os meus colegas de trabalho viram, mas por medo de represália não fizeram nada. A história acabou chegando até a diretoria do banco e fomos chamados para falar sobre o assédio. Ele negou, disse inclusive que era muito religioso, casado e que jamais faria uma coisa dessas. Como eu não tive como provar o assédio, ele começou a me ameaçar, dizendo que faria de tudo para me demitir. Ele conseguiu que eu fosse demitida em maio deste ano. Com dez anos de trabalho, o banco preferiu acreditar nele do que em mim. Além de ser casado, ele tem uma amante no banco e já assediou outras duas funcionárias, que também acabaram sendo demitidas. A diretoria do banco na época me ameaçou, dizendo que como não tinha testemunhas não poderia processar o gerente porque eu seria processada por danos morais. Hoje estou desempregada e ele continua lá, provavelmente assediando outras mulheres.”

--------------------------------------------------------------------------------


Prática comum em profissões de perfil masculino


O assédio sexual é mais comum entre as mulheres que ocupam cargos em profissões onde os homens são maioria, segundo a coordenadora da comissão estadual da trabalhadora da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Ivânia Alves Moura. “As mulheres hoje estão ocupando o lugar dos homens em várias profissões onde eles ainda são maioria. Por isso, o assédio acaba ocorrendo com mais freqüência em profissões com perfil mais masculino, como os metalúrgicos. Mas o problema hoje está presente em todas as profissões, sem distinção”, diz Ivânia.

Para combater o assédio sexual, a Confederação Nacional dos Bancários (CNB) fez uma cartilha que explica como o profissional pode se prevenir e quais providências tomar em caso de denúncia. “Quando se fala em assédio sexual já vem em mente uma atitude mais drástica do assediador. Mas muitas vezes o assédio é muito sutil, até porque ocorre sempre num lugar mais discreto, e dificilmente há testemunhas. As mulheres também acabam se culpando pelo assédio e preferem o silêncio a se expor”, afirma a diretora do Sindicato dos Bancários de São Paulo, Juvândia Moreira Leite.

Os dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT) indicam que, dos casos de assédio sexual que ocorrem no local de trabalho, somente 1% acaba sendo denunciado. Na Europa, 3 milhões de trabalhadores foram vítimas de assédio sexual nos últimos anos.

--------------------------------------------------------------------------------


Saiba mais

Como outros países encaram o assunto
A expressão assédio sexual foi criada nos anos 70 por professores da universidade americana de Cornell, ao perceber a necessidade de criar uma palavra que sintetizasse a conduta de um superior hierárquico com conotação sexual.

Nos Estados Unidos, o assédio é considerado discriminação sexual.O assediador pode sofrer um processo civil e ter de pagar uma indenização à vítima.

Na Nova Zelândia os casos de assédio sexual são julgados pela lei trabalhista. O assediador pode ser demitido e a empresa, enquadrada por responsabilidade solidária, deve pagar indenizações à vítima.

Assédio sexual é considerado crime na França. A Justiça francesa considera assédio apenas os casos de chantagem e de abuso de autoridade, deixando de fora as insinuações ou outros tipos de constrangimento.

Na Argentina apenas o assédio no serviço público é punido pelo código civil. No Brasil, a lei federal 10.224, que estabelece o assédio sexual como crime previsto no Código Penal, está em vigor desde 15 de maio de 2001.