ASSÉDIO

Artigo publicado na revista LM/Agosto de 1997

O Poder do Assédio
Poucos casos registrados não mostram a real face nas empresas

Assédio Sexual não é sexo. É poder. Ela tem. Você não. Se processar pode nunca mais ter outro emprego nessa área. Se não processar será enterrado em Austin, um buraco qualquer. Processe, notícias. não processe, fofocas. Processe, ninguém acredita. Não processe, sua mulher não acredita. Se processar, sua vida será um inferno até o caso ser julgado. E por esse privilégio pagará no mínimo U$ 100 mil.

Esse diálogo forte e denso acontece no escritório da advogada Catherine Alvarez. Seu cliente é o ator americano Michael Douglas no papel do executivo Tom Sanders, assediado sexualmente pela irresistível Demi Moore, que representa a calculista vice-presidente de poderosa indústria da informática, Meredith Johnson. A cena está no filme Assédio Sexual, de 1994, mais um sucesso enlatado produzido por Hollywood. pura ficção? Nem tanto. O fato de um homem ser importunado, talvez. Já existem números denunciando que pelo menos 10% das queixas de assédio sexual registradas pela Comissão de Iguais Oportunidades no Emprego dos Estados Unidos são movidas por homens.

Mas se o filme não fosse feito dessa maneira, talvez não chamasse atenção para o sério problema que atinge também os escritórios brasileiros, onde se repetem cotidianamente cenas muito parecidas nos finais de expediente entre chefes e subordinadas. O assunto, pois, interessa a homens e mulheres.

Se imaginarmos que num universo de quase duas mil secretárias pesquisadas no Estado de São Paulo, a maioria entre 21 e 30 anos, solteiras, com grau universitário e trabalhando em grandes empresas, 24% responderam sim à questão "você é ou já foi vítima de assédio?", estaremos diante de uma realidade nada virtual e cruel. Cruel porque, apesar de a pesquisa apontar enorme disposição nas entrevistadas em denunciar (78,71% responderam que sim), apenas sete casos foram oficialmente registrados e estão tendo acompanhamento do Sinsesp - Sindicato das Secretárias do Estado de São Paulo - desde que o levantamento foi realizado, em 1995. Segundo o Sindicato, a realidade brasileira não é muito diferente da dos Estados Unidos, onde recentes levantamentos apontaram índice muito próximo: 26% das secretárias já foram abordadas por seus chefes e, segundo a Organização Internacional do Trabalho, pelo menos uma em cada 12 secretárias já foi importunada sexualmente. Isso não significa que apenas as secretárias são alvo no mundo das empresas. Elas são as mais visadas ou estão mais sujeitas, até mesmo pela proximidade e convivência diária com os superiores. Por isso a pesquisa revelou que 51,19% das entrevistadas acham que a secretária não é a profissão mais sujeita e 17,04% disseram que o assédio independe da profissão.

A pesquisa foi organizada pelo Sinsesp com participação da vice-presidente executiva Maria Elizabete Silva D'Elia, que desenvolveu diversos trabalhos na área sistematizados em livro a ser lançado neste segundo semestre. É a primeira obra do gênero de autor nacional e terceira na área em parceria com o escritório Psyko-Universal, que pretende ser um centro de desenvolvimento humano, com sede em São Paulo, através do diretor e psicólogo Alberto Araujo e da advogada Lilian Gouveia. Maria Elizabete gerou além de um modesto Manual Preventivo distribuído entre a categoria com definições, dicas e telefones para denúncias, duas ações concretas com relação ao problema. A primeira é um seminário apresentado em diversas cidades do Estado, e no Grande ABC tem data prevista para novembro, denominado Saiba mais sobre assédio sexual-uma abordagem pessoal e profissional. A segunda é o atendimento jurídico e psicológico dirigido às assediadas feito pela parceria Sinsesp/Psyko Universal.

Segundo o trio de profissionais especialistas no assunto, um dos aspectos mais graves é justamente o fato de o assédio ainda não estar previsto no Código Penal. Como enquadrá-lo, então? "Como constrangimento ilegal, injúria, ameaça, perigo para a vida ou a saúde de outrem, importunação ofensiva ao pudor ou mesmo lesão corporal" - explica a advogada Lilian.

Lesão corporal, nesse caso, não significa necessariamente manchas em algum lugar no corpo ou algo semelhante. Um estado agudo de estresse causado pela situação constrangedora vivida pela vítima é o suficiente: "Trata-se de uma sutil tortura"- reforça o psicólogo Alberto.

Se a legislação brasileira não prevê o crime, embora projetos de autoria da deputada Marta Suplicy e da senadora Benedita da Silva estejam tramitando no Congresso Nacional, naquela velocidade característica das matérias de interesse nacional mas que não rendem votos, afinal a quem recorrer? A pesquisa revelou que 23% das secretárias entrevistadas correriam para a Delegacia da Mulher mais próxima, 15,79% apelariam para a própria empresa e outros 15,11% ligariam para o Sindicato. Entretanto, a vice-presidente Bete D'Elia recomenda solução mais adequada diante da realidade brasileira, onde não se conta com atendimento específico para esses casos nem mesmo nas Delegacias da Mulher: o telefone de uma das cinco subsedes do Sinsesp localizadas nas maiores cidades do Estado, inclusive no Grande ABC e a matriz da Capital, ou o telefone da Psyko Universal, que nesses casos podem funcionar como um disque-denúncias. "Até porque, antes de formalizarmos um processo, precisamos ter certeza de que se caracteriza assédio sexual"- explica a advogada Lilian, lembrando que às vezes são procurados para resolver casos amorosos mal-sucedidos que nada têm a ver com assédio: "Se em algum momento houver reciprocidade, desconfigura-se o assédio. Uma cantada, uma paquera em ambiente de trabalho entre colegas não se enquadra como assédio. Assédio nada tem a ver com atração física e, sim, com o exercício do poder de alguém que o possui sobre a pessoa que não o tem" - reforça Lilian.

Identificado e caracterizado, o próximo passo é fazer diagnóstico baseado em levantamento minucioso sobre o ato em si. "A cena do escritório da advogada no filme é uma aula, é aquilo mesmo"- afirma o psicólogo, reportando-se ao diálogo entre advogada e cliente sobre minúcias da tentativa de estupro de Demi Moore sobre Michael Douglas. Em seguida, acontece a primeira da série de três encontros entre representante da empresa em questão visando a acordo: "Nosso objetivo não é indenização financeira obtida através de ação cível para reparação de eventuais danos, como nos Estados Unidos, onde se instalou verdadeira indústria da indenização" - explica a advogada. O objetivo é a reparação do dano causado à saúde, previsto pela CLT, através do Programa de Recuperação dos Transtornos Causados no Assédio Sexual, nome do tratamento oferecido pela Psyko Universal em parceria com o Sinsesp, cujas despesas decorrentes são pagas pela empresa.

O tratamento consiste em programa com duração de 220 horas distribuídas ao longo de seis meses, onde a vítima e assediador devem participar. O perfil do assediador sexual é o de alguém com dificuldades emocionais - define o grupo de especialistas -, por isso recomenda-se a ele participar do tratamento. Além disso, o acordo prevê termo de confidencialidade assinado pelas partes que garante absoluto sigilo, evitando, assim, os transtornos da publicidade negativa para a empresa nesse tipo de caso.

Apesar dos 24% de vítimas potenciais de assédio no Estado, que num universo de quase duas mil pessoas significariam cerca de 480 ocorrências, apenas sete casos foram registrados oficialmente e, assim mesmo, dois deles depois de publicados pela Imprensa. Os outros cinco, coincidentemente, ocorreram na cidade de Santos, litoral paulista, e dois já estão em fase de tratamento. Por que essa incidência maior na Baixada? Lilian atribui ao fato de o primeiro caso ter tido grande repercurssão na mídia local, sem, entretanto, a divulgação dos nomes dos envolvidos. Ou seja, conseguiu-se mostrar a gravidade do assunto sem sensacionalismo e enfatizando o aspecto da confidencialidade proposta pelo Sinsesp/Psyko.

Segundo a diretora Ivone Maria Bruno, da subsede Santo André do Sindicato no Grande ABC, estima-se que o universo das secretárias somente no Estado de São Paulo gire em torno de 800 mil profissionais. Destas, provavelmente 20 mil trabalhem no Grande ABC. Mas apenas 4.529 estão associadas à entidade no Estado e 725 na região. Com números tão expressivos, é de se admirar o reduzido volume de denúncias. Segundo a especialista Elizabete D'Elia, isso acontece por vários fatores, entre os quais o fato de o Brasil não exercitar cultura de denúncia de qualquer espécie: "Basta fazer retrospecto sobre o que aconteceu com pessoas que fizeram algum tipo de acusação. Viveram alguns momentos de glória e depois foram marginalizadas, caíram em ostracismo total, a própria sociedade as rejeita, não arrumam emprego, etc". Nos casos envolvendo assédio não é diferente. Entretanto, Bete acredita que com a estrutura oferecida pela parceria do Sindicato através de suporte jurídico, psicológico e trabalhista, é possível à mulher sair mais inteira do processo para refazer a vida, incluindo aí ir à cata de novo emprego, apesar dos pesares.

Ainda é utópico, mas o grupo espera um dia contar com bolsa de empregos que garanta a recolocação de ex-denunciantes de assédio sexual. Outro fator inibidor de denúncias é a credibilidade: "Ainda vivemos sob síndrome do "se você foi assediada, você provocou"- Alerta Bete D'Elia. Além disso, as testemunhas, quando existem, geralmente são também subordinadas ao réu e, consequentemente, não querem se envolver por razões óbvias: possibilidade de perseguição no emprego, rebaixamento de cargo e demissão.

A luta parece desigual vista pelo ângulo da vítima, mas caso se joguem os holofotes para os números da mesma pesquisa feita junto às secretárias no Estado de São Paulo, que apontam 76,28% de respostas negativas à questão "na empresa onde você trabalha existe alguma política de prevenção ao assédio sexual?", é fácil concluir que o maior inimigo é mesmo a falta de informação. Isso ocorre até mesmo por parte da direção de empresas que ignoram (ou fingem ignorar), por exemplo, que ambiente de trabalho rígido e fechado gera cenário propício para o assédio. Por outro lado, quanto mais aberto o diálogo e francas as conversas entre colegas e chefias e subordinados, menor a incidência de cantadas no final do expediente.

Na opinião de Bete D'Elia, quanto mais divididas e compartilhadas forem as relações de poder dentro da empresa, mais fácil tratar o assunto, mesmo que venha a acontecer. Por quê? Porque num ambiente de descontração fica mais fácil distinguir comportamentos de natureza sexual bem vindos dos não bem vindos, ou seja, aqueles não solicitados, nem recíprocos. além disso, a própria postura da profissional pode evitar o contratempo quando ela tem consciência e controle sobre suas fragilidades e é firme e clara nas respostas às insinuações indesejadas. Uma dica: nunca fazer confidências sobre o estado emocional e/ou financeiro aos superiores. Um possível assediador pode encarar o fato erroneamente como um pedido de socorro e tentar resolver do jeito dele.

Outra dica: moda e bom-senso nem sempre andam de mãos dadas. Por isso, evitar exageros no vestuário é de bom tom, recomenda Bete D'Elia. Ir ao trabalho, não é o mesmo que ir à uma festa. Obviamente, se se é secretária de uma agência de publicidade, o vestir será mais para o descontraído. Já se o local de trabalho é um banco na avenida Paulista, o look pode tender para o clássico. Se for preciso andar pela fábrica e o escritório durante o expediente, a vestimenta deve ser adequada. A vice-presidente do Sinsesp destaca ainda o fator segurança técnica da secretária: "Uma boa formação profissional confere a qualquer pessoa grande dose de autoconfiança e autovalorização, ingredientes básicos para fazer qualquer um se sair bem de situações constrangedoras. A empresa, por sua vez, precisa adotar políticas mais abertas, gerando respeito dentro do ambiente de trabalho".