ASSÉDIO

Assédio Sexual - Sistema de Dominação Remanescente

"Marido e mulher são um, e esse um é o marido."
(Sir William Blackstone, o maior de todos os juristas ingleses).

"Em sexo, atributos adquiridos, quantidade e qualidade de dotes naturais, sentimentos ou intelectos, você é inferior".
(Coleridge - poeta americano - à sua mulher Sara).

A mulher trabalhadora ganhou no século XIX uma proeminência extraordinária. É evidente que ela já existia como trabalhadora muito antes do advento do capitalismo industrial, ganhando o seu sustento como fiandeira, costureira, ourives, parteira, polidora de metais, cervejeira, fabricante de botões, criada de lavoura ou doméstica etc. Mas no século XIX ela foi observada, descrita e documentada com uma atenção sem precedentes, quando seus contemporâneos debateram a conveniência, a moralidade e até a legalidade das suas atividades assalariadas.

A mulher trabalhadora foi um produto da Revolução Industrial, não tanto porque a mecanização tenha criado para ela postos de trabalho onde antes não existiam, mas porque no decurso dessa revolução a mulher se tornou uma figura perturbadora e visível.

Mas nem sempre foi assim. Enquanto o mundo seguia seu curso, crescendo, desmoronando, refazendo-se, mulheres em toda parte cuidavam de seus filhos, ordenhavam vacas, lavavam, passavam, limpavam e cozinhavam, curavam doentes, preparavam os mortos - exatamente como neste momento, em algum lugar, as mulheres estão fazendo ainda hoje. A extraordinária continuidade do trabalho das mulheres, de país em país e de época em época, é uma das razões de sua invisibilidade; a visão de uma mulher amamentando um bebê, mexendo uma panela ou limpando o chão é tão natural quanto o ar que respiramos e, do mesmo jeito que o ar, não atraiu qualquer análise científica antes dos tempos modernos.

Com a Revolução Industrial e o capitalismo mais e mais trabalhadores eram necessários e algumas perguntas se tornavam o centro das atenções:

Qual o impacto do trabalho assalariado no corpo feminino e na sua capacidade de desempenhar as funções maternais e familiares?
Que gênero de trabalho é adequado para uma mulher?

Muitos entendiam que era inconciliável a atividade produtiva e criação dos filhos com a mudança do local de trabalho, ou seja fora de casa. Alguns ainda achavam que as mulheres só poderiam trabalhar durante curtos períodos de suas vidas, antes dos filhos e quando o marido não pudesse mais sustentar a família.

Daí foram gerados empregos de baixos salários, não especializados, reflexo da prioridade das suas obrigações domésticas e maternais em detrimento de qualquer especialização impedindo a identificação profissional a médio e longo prazo.

O problema da mulher trabalhadora, então, era ela ser uma anomalia num mundo onde o trabalho assalariado e responsabilidades familiares se tinham tornado ocupações de tempo integral e especificamente diferenciadas.

Mas o desenvolvimento do capitalismo industrial aos poucos foi percebendo as "qualidades" da mulher trabalhadora: a atenção aos detalhes, a submissão pelo medo de perder o emprego, a paciência, a constância, o baixo salário, enquanto os homens estavam mais sujeitos, pelos altos salários, condenados a suportar os períodos de desemprego crônico. De maneira que, em conseqüência disso o sexo era oferecido com única razão para as diferenças entre homens e mulheres no mercado de trabalho.

O homem como responsável pela família tinha seu salário elevado porque no seu pagamento estava incluída a subsistência da família, por isso apenas o seu salário tinha importância e o salário das mulheres não produziam valor econômico significativo.

As diversas práticas utilizadas pelos empregadores eram um outro tipo de domínio da produção do discurso da divisão sexual do trabalho. Quando o empregador tinha postos de trabalho a preencher especificava não só a idade, a qualificação requerida mas também o sexo (nos Estados Unidos até a raça e a etnia eram prática de recrutamento), pois as características dos trabalhadores eram freqüentemente descritas em termos de gênero. Ex.: "Irlandeses não devem se apresentar para esta vaga" ou "Necessita-se de raparigas fortes e saudáveis" ou "Necessita-se de famílias formadas por raparigas para trabalho fabril" ou ainda "A fim de evitar que as crianças sejam negligenciadas nas suas casas, não empregamos mães com filhos pequenos na nossa fábrica, exceto se forem viúvas, mulheres abandonadas pelos maridos ou cujos maridos sejam incapazes de ganhar a vida". Este era um dos lemas de uma fábrica de papel de Cowan, na Inglaterra, em 1865.

Em resumo e mesmo a despeito das "boas-intenções", quando se oferecia emprego para mulheres era normalmente para cortar custos e aumentar lucro, visto tratar-se de baixos salários e trabalho sem qualificação específica.

A elevada carga horária de trabalho e o fluxo de mulheres nas fábricas iniciou uma formação de verdadeiros harens onde o chefe tinha suas meninas que, em nove de cada dez casos, se submetiam aos seus caprichos por medo de perder o emprego.

Esse foi o início do assédio sexual no trabalho.

Clareando um pouco mais a questão da dominação da mulher, até porque alguns países tiveram seus processos de industrialização mais tardios, gostaria de citar alguns exemplos recentes:

Portugal - A ditadura de Salazar, incluiu em 1933 na Constituição o seguinte: "Se todos são iguais perante a lei, as mulheres não podem sê-lo por causa da diferença de natureza e do interesse da família" dispositivo que somente viria a ser derrogado por completo em 1975, com a Revolução dos Cravos.

Iran - Decreto de Komeini - "As mulheres não são iguais e, biológica, natural e intelectualmente inferiores aos homens". Outros exemplos: o dia do casamento é compulsório, escolhido pelo pai, o qual escolhe também o noivo, mas apenas para a filha, já que o casamento é um negócio de família, quando se trata da mulher que vai casar; estupram meninas presas porque é contra Deus matar virgens; maridos punem suas mulheres jogando ácido nos seus rostos, ou queimam seus cabelos se não tiverem cobertos pelo "hejab" (traje religioso correto) que além de tudo é contra-revolucionário não usar. As mulheres politizadas são presas, estupradas e mortas.

Índia - mulher só casa se tiver dote, sendo o marido escolhido pelo pai da noiva. Famílias com bebês mulheres queimam suas filhas recém-nascidas da mesma forma que é comum a viúva imolar-se na mesma fogueira do marido morto.

Na França e nos Estados Unidos a situação da mulher foi um pouco diferente, pois em meados de 1800 as francesas e as americanas tinham sua "Declaração dos Direitos da Mulher" e conquistas na área da educação no sentido de ser permitido à mulher fazer cursos universitários. Na França desde 1980 o ato sexual praticado pelo casal sem o consentimento da mulher constitui crime de estrupo e as leis americanas que punem atos de assédio datam da década de 50.

De uma forma geral as mulheres se beneficiaram lenta e gradualmente da democratização da educação e mais acentuadamente nas últimas décadas, o que faz com que o nível de instrução da mulher, cada vez mais se aproxime dos homens e diminua as diferenças de capacitação profissional, permitindo que a mulher egressa dos guetos femininos de atuação no mercado de trabalho e busque áreas que até há poucos anos eram consideradas como guetos masculinos no ramo de profissões.

Este fato ameaça o mundo masculino do trabalho, da política, das forças armadas, provocando o desequilíbrio do poder.

O mundo mudou, as formas de dominação da mulher também mudaram. Ontem elas se davam nas famílias, nos campos, hoje nas fábricas e escritórios. Percebemos isso porque de forma geral os salários menores que de homens na mesma profissão continuam, a dificuldade de galgar cargos de chefia também e hoje já se fala e combate assédio sexual que persegue e vitima a mulher desde seu ingresso no mercado de trabalho há mais de 200 anos.

Tratado de maneira mais enfática após o episódio de Clarence Thomas (juiz da Corte Americana) e Anita Hill que o denunciou em 1991, fez com que diversos países prestassem mais atenção ao tema.

Enquanto nos Estados Unidos existe um amplo leque de procedimentos para caso de assédio incluindo treinamentos empresariais para a prevenção, legislação, multas etc. no Brasil o assunto não vem sendo tratado com a seriedade que merece, pois ainda esta no subconsciente do brasileiro a questão da mulher no mercado de trabalho que sempre deixa a pergunta que não é ouvida: O que será que ela fez para ele ter tomado esta atitude?

Quando pensamos assim deixamos de lado toda a história da humanidade sobre as formas de dominação da mulher e esquecemos que o assédio é uma questão de poder, através da discriminação porque ele deixa a pessoa assediada em imediata situação de desvantagem, diminuída, envergonhada.

Principalmente no Brasil onde a cultura e o comportamento do povo é mais informal do que por exemplo em países como o Japão, Alemanha, e mesmo o Estados Unidos onde é costume manter-se uma distância das pessoas que varia de 80 cm a 1 metro e nem é comum abraços e beijos, além da deficiência de legislação e cumprimento mesmo das leis é necessário esclarecer bem o assunto, saber definir o que pode ser assédio e o que não é.

Recentemente, no mês de setembro na IV Conferência Mundial da Mulher promovida pela ONU em Pequim foi aprovada uma declaração conjunta dos países participantes comprometendo-se a combater as restrições e obstáculos ao avanço e expansão do papel da mulher em todo mundo.

Entre as principais decisões da Conferência destacamos:

  • as mulheres tem o direito de decidir livremente todas as questões relacionadas com sua sexualidade e maternidade. Esterilizações e abortos forçados são condenados (sexo);
  • governos, partidos e todo setor privado deveriam construir uma massa crítica de mulheres em posições de liderança (poder).

A despeito do avanço que significou essa Conferência a própria declaração reafirma as dificuldades que a mulher sofre, nos diversos países do mundo ainda hoje.

A mulher brasileira, em particular é privilegiada, embora traga também na sua história a violência contra a mulher.

A colonização do Brasil foi completamente distinta da colonização dos outros países e este fato nos deixou marcas profundas.

As mulheres índias e as negras tiveram papel fudamental na formação do povo brasileiro. Os navios que aqui chegavam vinham primeiramente repletos de homens portugueses, e depois franceses, holandeses, dessa forma as índias logo no início e as negras alguns anos depois, com o comércio dos negros, serviam aos homens da colônia, não só para satisfazer seus desejos, mas para continuar procriando e gerando pessoas para trabalho e construção do mundo novo na Colônia portuguesa.

Na verdade, nosso povo foi se formando de maneira mais pura, mais aberta, mais em sistema de irmandade, já que se percebeu, no início da colonização que Portugal era muito longe para solucionar dificuldades de qualquer espécie e por isso os "brasilíndios" naquela época, tinham que se valer uns dos outros.

Esta situação particular onde a necessidade da mulher para continuar a espécie foi mais clara e acentuada que em outras colonizações, propiciou a mulher brasileira um quadro diferente na ocupação do seu espaço, mesmo sendo submissa, ou sem ser adequadamente respeitada, era ouvida e suas palavras muitas vezes encontravam eco.

Este fato pode ser considerado através da Constituição Federal de 1988 que garante direitos iguais para homens e mulheres ou mesmo pela pesquisa da Revista Veja lançada em Agosto de 1994, que apresenta um excelente retrato da mulher brasileira.

Essa pesquisa mostra uma mulher corajosa, participativa, que não ignora as dificuldades de ser mulher num mundo criado e escrito por homens, mas que não deixa de conquistar a cada segundo o espaço destinado a ela, quer seja na escola, na família, na empresa ou na política.

Finalizando vale lembrar que nada adianta substituir alguém que veste paletó por alguém com saia ou vice-versa, para ocupar a mesma função, quando esta é servir ao mesmo sistema de dominação e de conservação.

O assédio sexual faz parte desse sistema de dominação e talvez seja uma das últimas ferramentas. Por isso precisa ser combatido da maneira mais consciente e esclarecedora possível. Sabendo o que é e porque acontece poderemos nos preparar para enfrentá-lo.

"Os avanços sociais e as mudanças periódicas se operam em razão do progresso das mulheres no rumo da liberdade... a extensão dos privilégios das mulheres é o princípio geral de todos os avanços sociais"
Flora Tristan, revolucionária francesa - 1838

Leida Borba de Moraes

  • Presidente do Sindicato das Secretárias do Estado de São Paulo.

  • Presidente da Federação Nacional das Secretárias e Secretários.

  • Presidente do Capítulo Brazil do IAAP-International Association of Administrative Professional.

  • Diretora de Assuntos de Seguridade Social da CNTC-Confederação Nacional dos Trabalhadores no Comércio.

  • Comendadora da Ordem do Mérito Alvarista – Fundação Alvares Penteado – pelos bons serviços prestados à Educação no País.

  • Conferencista nacional e internacional.

Email: leida@mandic.com.br