CONGRESSO DE SECRETÁRIAS

Palestra: "O papel da educação e do trabalho na socialização do saber"

Senadora Emília Fernandes - PDT-RS

Ficaria feliz se minhas primeiras palavras tivessem capacidade de externar, com a ênfase adequada, todo o meu contentamento em poder participar deste XII Congresso Nacional de Secretariado. Ao agradecer aos organizadores a amabilidade do convite para aqui estar, neste momento, sinto-me duplamente honrada: por participar de um encontro que congrega uma laboriosa categoria profissional, de cujo eficiente trabalho o Brasil tanto se serve e do qual pode efetivamente se orgulhar, e por ter a chance de, na condição de palestrante, expor algumas idéias em torno de um tema que a todos diz respeito.

Ficam, pois meus agradecimentos pela oportunidade que me concedem e os votos mais sinceros de que este Congresso esteja conseguindo atingir plenamente seus objetivos. Assim, quando do término dos trabalhos, que todos se sintam compensados pela fértil circulação de idéias, pelas possibilidades de aprendizagem, pelo congraçamento pessoal e profissional trazidos por esses dias de convivência coletiva, fraterna e solidária.

O tema que devo abordar - O PAPEL DA EDUCAÇÃO E DO TRABALHO NA SOCIALIZAÇÃO DO SABER não é apenas importante; antes é essencial para a compreensão do mundo contemporâneo. Por essa razão, tentarei dividir minha exposição em dois momentos: no primeiro procurarei traçar um rápido cenário deste final de século e, na medida de minhas possibilidades e do limite de tempo disponível, contextualizá-lo historicamente. A seguir, pretendo esboçar o novo papel que se espera da educação e o novo sentido conferido ao trabalho em nossos dias, uma realidade em tudo e por tudo distinta daquela existente até bem pouco tempo.

Desnecessário dizer que todas as minhas reflexões estarão contingenciadas por dois aspectos decisivos de minha trajetória pessoal e profissional: o fato de ser uma educadora, portanto alguém que dedicou boa parte de sua vida ao exercício do magistério e a pensar continuamente sobre o assunto, e o de atuar na vida pública, agregando à experiência docente as responsabilidades inerentes a uma detentora de mandato parlamentar. Essas duas vertentes - complementares e convergentes, aliás - dão a base e o fundamento do que estarei expondo.

Começo por destacar a singularidade dos tempos atuais. Com efeito, esta passagem de século e de milênio assiste a um processo de transformação sem paralelo na história. Sabe-se que a História, exatamente por ser sinônimo de vida, move-se incessantemente. Nesse sentido, a clássica expressão cunhada pelo pensador pré-socrático grego - "Ninguém atravessa o mesmo rio duas vezes" - é, muito provavelmente, a mais singela, objetiva e correta forma de se definir o contínuo movimento, a perene transformação que impulsiona a vida humana. Sob esse angulo, nada de novo haveria a realçar quanto às mudanças em curso, no momento presente.

Entretanto, há uma diferença fundamental: nunca, como agora, as transformações se processaram com tamanha velocidade e com tão densa verticalidade. Nunca, como agora, num curtíssimo espaço de tempo, tantas mudanças ocorreram em escala planetária, atingindo, com maior ou menor intensidade, todas as sociedades. Nunca, como agora, o invulgar dinamismo da História, com assustadora celeridade, subverteu tantos valores e crenças, abalou tantas convicções e impôs paradigmas inovadores em praticamente todos os setores da vida.

Afinal, em que consistem as mudanças verificadas em nosso tempo? Qual a sua natureza? Um mínimo de clareza quanto a essas questões é absolutamente indispensável para que se possa compreender a realidade contemporânea e, a partir daí, inserir a educação e o trabalho nesta que está sendo uma autêntica sociedade da informação, a caminho de se constituir na sociedade do conhecimento.

O que estamos presenciando na atualidade é fruto de um já longo processo de amadurecimento. Se nos fixarmos no denominado mundo ocidental, veremos que, nos séculos XV e XVI - portanto, no alvorecer dos Tempos Modernos - teve início um vigoroso processo de expansão da Europa, tendo por fundamento material as atividades mercantis. Naquele momento, Portugal e Espanha, enfrentando toda sorte de dificuldades e de adversidades, descortinaram novos horizontes para os europeus; terras, sociedades e culturas, até então desconhecidas passavam a ser incorporadas ao universo do nascente capitalismo.

Ali estavam sendo dados os primeiros passos para uma nova realidade que, hoje, chamamos de globalização. O segundo momento, tão ou mais importante, foi protagonizado pela revolução Industrial que, nascida na Inglaterra de meados do século XVIII, expandiu-se rapidamente. O século XIX, sobretudo em sua segunda metade, correspondeu à etapa de grande salto do capitalismo, quer avançava na industrialização: era a corrida imperialista, incorporando mais e mais áreas do sistema ampliando os limites da ação econômica e financeira. A economia se mundializava a passos largos.

Quem teve olhos para entender que se passava naquele momento, pode vislumbrar o que viria a seguir. Reporto-me, a esse respeito, a Karl Max e Friedrich Engels que, no efervescente ano de 1848, numa Europa convulsionada por revoluções em quase todo o continente, escreveram um pequeno livro, o Manifesto Comunista, no qual anteciparam o futuro da economia mundial. Realçando a força avassaladora da indústria moderna, que rompia com todos os padrões de produção conhecidos e alterava drasticamente formas tradicionais de organização da sociedade, os autores antecipavam o que hoje sintetizamos com o termo globalização.

Na visão dos autores, nada deteria a marcha ascensional daquele sistema econômico e tudo o que se atrevesse a dificultá-la haveria de ser destruído. A frase magistral que escreveram "Tudo o que é sólido desmancha no ar" - tornou-se premonitória: velhas formas de produção foram sendo tragadas pelo vendaval da novidade, antigas concepções morais e éticas cederam lugar a novos parâmetros delineadores da sociedade que se gestava.

Foi assim que chegamos ao século XX. Duas guerras mundiais e milhares de outras localizadas, colossais crises econômicas - como a de 1929, geradora da Grande Depressão dos anos trinta - revoluções políticas e momentos de elevada tensão social não foram capazes de reverter o quadro que, timidamente esboçado com a expansão comercial e marítima dos séculos XV e XVI, a revolução industrial consolidara irreversivelmente. Os anos de sensível prosperidade econômica entre a pós-Segunda Guerra Mundial e a década de 1960, alicerçaram o terreno para o quadro que hoje conhecemos, especialmente desenhado a partir dos anos oitenta.

Penso que, da síntese aqui apresentada, dois aspectos podem e devem ser destacados: a nova visibilidade que a economia industrializada veio conferir à educação - crescente e progressivamente compondo um verdadeiro sistema educacional - e ao trabalho. Com efeito, o que entendemos por educação formal é algo recente na História, seguramente nascida das circunstâncias criadas pela industrialização e, concomitantemente a ela, da afirmação econômica, política e social da classe que a lidera e conduz, a burguesia.

Não por acaso, é ao longo do século XIX que se consolidará a noção de um sistema educacional. Naquele momento, no rastro de uma economia capitalista que se expandia e dos valores burgueses que se afirmavam, a escola passa a desempenhar significativo papel: como "templo sagrado" do conhecimento, tem a missão civilizadora de recolhendo o legado cultural da humanidade, transmitir esse saber às crianças e aos jovens que a ele deveriam acorrer. Claro que essa educação não se estruturava para oferecer um atendimento universal: bastava-lhe atender às necessidades das famílias abastadas, em franco processo de ascensão.

Acontece que o contínuo da industrialização trazia resultados variados, e não apenas aqueles diretamente vinculados aos aspectos materiais. A propósito, duas dessas conseqüências precisam ser destacadas, neste ponto de nossa análise: em primeiro lugar, a radical transformação nas relações sociais de produção, vale dizer, o novo - e decisivo - papel conferido ao trabalho, a começar pela emergência do proletariado. Fábricas e máquinas não prescindiam da força de trabalho humano; antes, dela necessitavam de maneira vital, tanto para impulsionar a produção, quanto para consumir o produto.

Além e ao lado disso, a industrialização tornou inevitável a urbanização da sociedade, processo que, iniciado lentamente nos primórdios da Revolução Industrial, por ser constante e crescente explodiu no século XX. Hoje, ao contrário de qualquer outro período da História, a vida urbana tem peso e significado muito maiores do que a rural. Não se trata, em absoluto, de mera transposição de local de moradia da maioria da população. Agregada a diversos fatores, a urbanização implicou mudança profunda na forma de organização da vida social, com novas e múltiplas exigências a serem atendidas, sob pena de se ver instalado o caos na sociedade.

Não por outra razão, o sistema educacional se viu obrigado a abrir-se incorporando à sua tradicional clientela os milhares de novos atores que, no palco da História, passaram a ter visibilidade. Não se tratava mais de uma multidão desconhecida, sem voz e sem rosto, escondida por entre vales e montanhas. Eram agora, homens e mulheres incorporados à moderna economia, vivendo em centros urbanos, carecendo de serviços e equipamentos compatíveis com sua nova realidade de vida.

Fixamo-nos agora na realidade do mundo contemporâneo. Apoiando-se no conhecimento científico e tecnológico, cada vez mais essencial e insubstituível, a economia dinamiza-se ainda mais e, ao fazê-lo, mundializa-se com impressionante rapidez. As inovações tecnológicas, de aplicação imediata, alteram radicalmente o sistema produtivo. O modelo de produção consagrado entre o final do século passado e as primeiras décadas do atual, mostra-se cada vez mais anacrônico e, assim, vai sendo substituído.

A indiscutível hegemonia do capital financeiro, em nossos dias, manifesta-se na condução de todo o processo produtivo. Conspirando a seu favor, a sofisticada tecnologia hoje disponível permite a realização de transações imediatas, instantâneas ou, como se diz "em tempo real". Da mesma forma que a economia mundializada requer facilidades e rapidez na circulação de seus produtos, os capitais viajam pelos mercados financeiros diariamente, sempre em busca da melhor remuneração, não necessariamente como viabilizador da produção.

O dinamismo dessa economia impulsionada pela tecnologia subverte os tradicionais conceitos de fronteiras nacionais, fragiliza os estados - normalmente submetendo-os aos seus caprichos e aos seus interesses - e estimula a formação de blocos regionais de países - como instrumento de apoio à melhor inserção num mercado mundial extremamente voraz e competitivo.

Mas não é só isso. Se é verdade que capitais e mercadorias circulam com celeridade, não menos verdadeiro é o fato de que o mundo também se tornou menor pela ação dos meios de comunicação. Uma vez mais, o conhecimento científico e tecnológico assume papel determinante na configuração de uma portentosa rede: imprensa, rádio e televisão se encarregam de levar, a cada instante, ao mundo inteiro, informações a respeito, literalmente, de tudo. Sem falar na Internet, cada vez mais presente na vida das pessoas como extraordinária forma de acesso à informação.

Chegamos ao ponto central da nossa exposição. Neste mundo em contínua mutação - em que as transformações parecem não ter fim, indo dos mecanismos de produção às relações de trabalho, de normas de conduta e padrões de comportamento aos valores ético e aos preceitos morais - em que tudo o que parecia sólido se liqüefaz num piscar de olhos, como fica a educação? Estarão os sistemas educacionais tal como se apresentam hoje pelo mundo afora, preparados para darem respostas adequadas às novas e diferenciadas exigências suscitadas pela civilização contemporânea?

Temo que a resposta seja negativa, o que é válido tanto para o Brasil como para boa parte do mundo. Em termos educacionais o grande desafio da atualidade é, além de garantir o acesso de todos à escola, pelo menos no nível básico, esforçar-se para que o trabalho pedagógico liberte-se dos paradigmas do século XIX, que, creiam, ainda teimam em continuar existindo. Objetivamente em que consiste isso?

Em primeiro lugar é preciso que aceitemos as contingências de um novo tempo. Assim, numa época em que a informação brota de todos os lados, disseminando-se com facilidade que somente as novas tecnologias podem oferecer, a escola não mais pode imaginar-se o "templo sagrado" do saber, monopólio natural de quem guarda e transmite o enorme acervo do conhecimento universal. Esse, acredito, deve ser o primeiro passo.

A seguir a escola deverá preparar-se para lidar, com inteligência e eficácia, com o monumental universo de informações colocado à disposição de todos. Nisso estou convencida reside sua nova e extraordinária missão: ser capaz de selecionar o significativo do acessório, o essencial do dispensável. Eis algo que Internet alguma pode fazer, que nenhum veículo de comunicação poderá executar. A educação, fundamentalmente à educação esta reservado esse decisivo papel.

A escola assim concebida fatalmente terá que se livrar do enorme fardo de imaginar-se responsável pela transmissão de conteúdos vastíssimos, de quilométricos programas de ensino. Ela terá de ser ágil o suficiente para acompanhar o ritmo do mundo, flexível o bastante para eventualmente modificar seu planejamento, humilde o necessário para não cair na tentação de ser o centro de tudo.

No caso do Brasil, vejo com bons olhos o que está sendo proposto em termos de profundas inovações nos ensinos fundamental e médio, a começar pela introdução das diretrizes dos parâmetros curriculares, tentativa válida de nos livrar da prisão de ultrapassadas "grades curriculares". Propostas inovadoras, aliás somente possíveis a partir da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação nacional que ajudamos a elaborar e a ser finalmente aprovada, após exaustiva tramitação em 1996.

A nova educação que, necessariamente, teremos de implantar, deixará de ser livresca e academicista. Nesse sentido, haverá de se esforçar por ser rigorosamente contextualizada, ou seja, vinculando o conhecimento à vida real, buscando reproduzir na sala de aula, em todas as áreas e disciplinas, as condições concretas do dia a dia. Assim, por exemplo, teremos o estudo da Física contribuindo para que o aluno conheça os mecanismos de funcionamento de um telefone celular; a Química tornando compreensível uma bula de remédio; a História se humanizando, descendo do pedestal dos grandes personagens e incorporando ao seu estado as realizações pessoais e sociais; a Geografia ajudando a entender o processo de ocupação do solo; a Matemática clareando as técnicas das pautas musicais, e assim por diante.

Mais ainda, a noção de formação inicial tornou-se obsoleta. Especialmente em decorrência da sofisticação tecnológica e da celeridade por ela imprimida às transformações no sistema produtivo, alterando de forma profunda as relações de trabalho, há que se falar doravante em educação permanente. Para tanto, desenvolver a educação a distância deixou de ser luxo para ser artigo de primeiríssima necessidade. Cursos rápidos, com currículos flexíveis, respondendo às crescentes e diversificadas demandas da sociedade, deverão estar sendo sempre oferecidos pelas escolas de todos os níveis, por organizações empresariais, igrejas, sindicatos e o que mais houver.

Não vejo outra forma de enfrentar o duplo desafio apresentado pela civilização contemporânea: preparar cidadãos conscientes de seu papel na sociedade e profissionais aptos a atuar, com proficiência, num mundo do trabalho completamente novo. Nesse caso, tanto a educação formal quanto aquela a ser oferecida continuamente, para alunos de todas as faixas etárias e de atuação em todos os campos profissionais, em salas de aulas ou por meio de cursos não presenciais, não poderão estar preocupadas com a "quantidade" do conhecimento a ser trabalhado, mas, isto sim, decididas a preparar seus alunos para compreender os mecanismos que presidem a produção, de serem capazes de acionar aparelhos cada vez mais sofisticados, de terem condições de tomar decisões, compreender, enfim, o universo profissional em que atuam.

Sei que o caminho é longo, árduo e difícil. Mas não se coloca a hipótese de não percorrê-lo, sob pena de ficarmos à margem da própria história. A sociedade da informação aponta para uma próxima sociedade do conhecimento. O domínio do saber será, seguramente, o grande capital a impulsionar o próximo século. Socializá-lo é a única maneira de se edificar uma Nação cidadã e materialmente desenvolvida.

Tenho esperança. Sobretudo, acredito na forma da sociedade. Ao exigir, debater e propor soluções ela estará impelindo o Poder Público não apenas a agir, mas também a exercer o papel de indutor das mudanças no sistema educacional.

Uma renovada educação para um mundo novo: disso não poderemos abrir mão, exatamente por ser a condição insubstituível para a permanente formação do novo homem, e da nova mulher que o mundo contemporâneo esta a requerer. Somente assim estaremos construindo a História do futuro.

Muito Obrigada