PERFIL

QUEM PRECISA DE MIM?

"Pelo trabalho os seres humanos atingem a paz consigo mesmos"
Diderot

"Vamos trabalhar, é a única forma de tornar a vida tolerável"
Voltaire

Os beneditinos deram um passo importante, no início da Idade Média, tocando os sinos para marcar as horas de trabalhar e as de comer, além das de rezar e Adam Smith dizia que a separação da casa e trabalho era a mais importante de todas as modernas divisões de trabalho.

De lá para cá muitas têm sido as mudanças no mercado de trabalho, como variadas têm sido as conseqüências dessas mudanças. Algumas conseguimos ver, como o desemprego, por exemplo. Outras, precisamente as que não vemos, apenas sentimos, são igualmente nocivas à nossa vida.

Exemplificando, o trabalhador ideal hoje é aquele que não mantém laços, ligações ou dependências, individualizado. Seja com leis ou contratos, horários, tenham condições de assumir riscos e estejam preparados para mudanças a curto prazo.

Percebe-se claramente que a "carreira" profissional e o próprio trabalho, têm consequentemente outro significado, assim como todo o vocabulário que adquirimos ao longo dos últimos anos para enfrentar o mercado.

"Carreira" significava, originalmente, na língua inglesa, uma estrada para carruagens, e como acabou sendo aplicada ao trabalho, um canal para atividades econômicas de alguém durante a vida inteira.

O capitalismo bloqueou a estrada reta da carreira, desviando de repente os empregados de um tipo de trabalho para outro.

A palavra "job" (serviço, emprego) em inglês do século XIV, queria dizer um bloco ou parte de alguma coisa que se podia transportar numa carroça, de um lado para o outro.

A flexibilidade hoje traz de volta esse sentido arcano de job, na medida em que as pessoas fazem blocos, partes de trabalho, no curso de uma vida.

Portanto as pessoas não sabem se os riscos serão compensados, que caminhos seguir, tornam-se ansiosas, inseguras.

Talvez um dos maiores impactos dessas mudanças seja a confusão sobre o caráter pessoal. Na antigüidade os escritores não tinham dúvida sobre o significado de caráter: é o valor ético que atribuímos aos nossos próprios desejos e às nossas relações com os outros e, segundo Horácio o caráter de alguém depende de suas ligações com o mundo.

Nesse sentido o caráter concentra-se sobretudo no aspecto a longo prazo de nossa experiência emocional. É normalmente expresso através da lealdade e o compromisso mútuo, pela busca de metas a longo prazo e, principalmente, pela prática de adiar a satisfação em troca de um fim futuro. Como exemplo um diploma, ter um filho etc., são inúmeros os fatos da vida que comprovam isso.

Da confusão de sentimentos que todos estamos, como decidimos o que tem valor duradouro em nós numa sociedade impaciente, concentrada no momento imediato? Como buscar metas de longo prazo numa economia dedicada a curto prazo? Como manter lealdade e compromisso mútuos em instituições que vivem se desfazendo ou sendo continuamente reprojetadas e as pessoas são tratadas como descartáveis?

Nesse sentido o trabalho em ou de equipe colabora para ampliar o caos na medida em que a ética do grupo está em constante oposição à ética do indivíduo.

Em equipes as pessoas trabalham partes do todo, sem referências completas, sem uma hierarquia definida e clara e, principalmente, sem saber em qual projeto ou com qual equipe irão trabalhar a seguir, se é que continuarão trabalhando.

As pessoas também não possuem o referencial de sua aceitação pela equipe, já que estas são criadas para projetos de curto prazo e não sobra tempo para pessoas. "Na verdade, o trabalho em equipe deixa o reino da tragédia para encenar as relações humanas como uma farsa".

Quem precisa de mim? É uma questão de caráter que sofre um desafio radical no capitalismo moderno. Com certeza você só consegue responder essa pergunta relacionada com sua vida pessoal, porque no mundo do trabalho você encontrará apenas indiferença.

Por tudo isso o pronome "nós" tornou-se perigoso e inadequado. Perigoso porque num mundo individualizado e de curto prazo, "nós" indica dependência ou resistência. De qualquer maneira alguma coisa que traz consigo laços, continuidade, longo prazo.

O que vem acontecendo no mundo do trabalho é um grande e terrível erro, já que na essência o trabalho é parte integrante do ser humano durante toda sua vida.

Um regime que não oferece às pessoas motivos para se ligarem uns aos outros não poderá preservar sua legitimidade por muito tempo. Resta-nos então apenas esperar? Ousaremos buscar o "nós" da resistência?

(referência bibliográfica - livro "A Corrosão do Caráter" - Conseqüências pessoais do trabalho no novo capitalismo - Richard Sennett - Ed. Record)

Julho/99 - Artigo publicado no Boletim "Sinsesp em Contato" no.56

Leida Borba de Moraes
Presidente FENASSEC/SINSESP