PERFIL

Artigo da Revista Carta Capital, de 11 de junho de 1997

Secretária do Futuro

Ela não vai acabar, como chegou a apregoar Bill Gates, mas se transformará em assessora direta dos executivos

É uma das mais célebres profissões do mundo. Remota à Antiguidade, quando os faraós, criaturas poderosíssimas e, por isso mesmo, tremendamente desorganizadas, valiam-se de servos que lhes faziam as vezes de agenda. Cada passo da divindade - visitas, almoços, reuniões governamentais -era de responsabilidade desse escriba, que vivia única e exclusivamente para ordenar o tempo de seu amo. A princípio exercido apenas por homens (os escravos diletos), o secretariado tornou-se, com o passar dos séculos, quase uma especialidade feminina.

Dizem que as mulheres têm talento natural para o cargo; falam também sobre a capacidade de organização (que os homens simplesmente não conseguem atingir); por fim, aceitam a tese de que só mesmo elas são capazes de se movimentar livre e harmoniosamente entre diretores, fornecedores, clientes e o grande público - e, o que é mais importante, sem perder o humor nem desmontar o penteado. Guerra de sexos à parte, o certo é que, ao contrário da era do ouro do Antigo Egito, o secretariado (hoje remunerado e, em alguns casos, muito bem) é exercido fundamentalmente pelo público feminino.

Mas não pense que esse atual domínio foi resultado de uma evolução da profissão; quando ela tomou forma, na segunda metade do século 19, em plena Revolução Industrial européia, ainda era hábitat masculino. Com o passar do tempo, foi perdendo prestígio. O machismo transformou a arte do secretariado, no início deste século, em função menor e delegou-se às mulheres (na forma de tarefas repetitivas e meramente operacionais), que começavam a reivindicar seu lugar na sociedade. Fortemente influenciadas pela cultura patriarcal e pela posição inferiorizada no mundo do trabalho, durante décadas elas não foram consideradas verdadeiras profissionais. Por mais experientes que fossem, as mulheres eram tratadas como se não soubessem pensar sozinhas.

Fim do estereótipo. "Os anos provaram que a profissão estava, definitivamente, chegando às mãos certas", explica Maria Elizabete D'Elia, 45 anos, vice-presidente do Sindicato das Secretárias do Estado de São Paulo (Sinsesp). Essa paranaense de Londrina foi secretária durante mais de 20 anos e assistiu a grandes mudanças comportamentais em sua área. Entre elas a evolução das funções da secretária - cujo estereótipo sempre foi aquela assustada mocinha, sem muito estudo, agarrada a um bloquinho de estenografia, tentando desesperadamente acompanhar o ditado do patrão. "Hoje ela é muito mais uma assessora", revela Maria Elisabete. "Está mais culta, mais preparada e à altura do executivo que representa".

Com a abertura de mercado crescente em todo planeta, os empresários tiveram de se adaptar à emergente (e imposta) competitividade. Essa necessária mudança de perfil atingiu, por tabela, as secretárias, os anjos da guarda de diretores e presidentes de grandes companhias. Obrigadas pela globalização a abandonar a obsoleta máquina de escrever e entrar de cabeça na informática, elas só tiveram a ganhar. Quem garante isso é a mineira Esther de Lourdes Bernardes, 32 anos, responsável pela agenda pessoal de um alto executivo da construção civil de Belo Horizonte. "Sou secretária há mais de dez anos", conta. "Quando comecei, a profissão estava em pleno processo de revitalização; tentava sair da obscuridade".

Aquele ser de óculos equilibrados na ponta do nariz, segundo grau incompleto, cuja única habilidade lhe fora conferida pelo curso noturno de datilografia, começou a morrer para o mercado no ínicio dos anos 80, quando o capitalismo percebeu que seria necessário reconquistar o mundo. E de forma ainda mais rápida e incisiva. "Enquanto a taxa de mudança foi razoável, enquanto as coisas evoluíam num ritmo em que pessoas normais conseguiam acompanhar, não era tão difícil ser competente. Hoje é quase impossível. A necessidade permanente de desconstruir o que se construiu, a necessidade de se mudar o que sempre deu certo, é o imperativo maior". A análise é do consultor Clemente Nóbrega, autor de Em Busca da Empresa Quântica, considerado o livro de cabeceira de dez entre dez secretárias brasileiras.

Recomeçar é preciso. A princípio preocupante, mas, após alguma reflexão, simplesmente verdadeira, a afirmação de Nóbrega faz pensar sobre a necessidade mercadológica e social de estar sempre recomeçando. É algo inerente ao ser humano; negar sua forma de pensar e agir e reestruturar-se a partir de uma renovada ótica filosófica. A partir da década de 80, a ordem mundial estabelecida e calcada em pastilhas de silício começou a transfigurar o planeta. Estruturalmente, tudo mudou - e o mercado rugiu à procura de profissionais mais capacitados.

O mundo foi cenário, em menos de uma década, de duas febres: a primeira, o domínio do idioma americano, que fez com que, repentinamente, fosse possível encontrar escolas de inglês nos mais longínquos e inesperados rincões; logo em seguida, a informática, ainda titubeante, mas já demonstrando sua futura vocação para designar os rumos da sociedade, começou a se impor como habilidade primordial para o novo século que já luzia no horizonte. As relações comerciais, antes reino da mais odiosa burocracia, estreitaram-se; e a informação ganhou status de paladina da liberdade.

"É necessário estar muito bem informado", garante Cristina Guimarães, 30 anos, secretária do presidente da Caloi, Bruno Caloi. Há oito anos na empresa paulista de bicicletas, essa mineira de Viçosa afirma que só o crescimento intelectual constante possibilita resultados satisfatórios. "Ao contrário de sua colega da década de 50, a atual secretária é um elo entre a empresa e os clientes internos e externos", compara. "É ela quem administra conflitos, como se fosse uma psicóloga; toma decisões na ausência do executivo; e coordena as informações necessárias para o dia-a-dia da empresa." Além disso, funciona como assistente e assessora do executivo e precisa desenvolver sua visão macro - conhecer a filosofia, a cultura e o clima de companhia.

Quanto à afirmação de Bill Gates, dono da Microsoft, empresa que desenvolve dezenas de programas de computador para executivos, sobre a extinção anunciada dessa espécie de profissional, Cristina se diverte: "Ele está completamente equivocado; isso jamais acontecerá; mesmo os diretores de pequenas companhias que entendem de informática precisarão de alguém que os auxilie a organizar o tempo. Esse é o maior desafio."

Próspera profissão. O secretariado é hoje, apesar de comentários como o de Gates e do quadro cruel da taxa de desemprego global, a terceira profissão que mais cresce no mundo, segundo um levantamento divulgado no início do ano nos Estados Unidos pela ONU. No livro O Trabalho das Nações, o analista Robert Reich cita o secretariado como uma das mais prósperas profissões e o classifica entre um seletíssimo grupo de trabalhadores por ele denominados "analíticos-simbólicos". Resumidamente, isso significa que a profissão engloba multiplicidade e diversidade de tarefas - tanto repetitivas quanto interpessoais - e exige pessoas capazes de identificar e resolver problemas complexos.

O resultado prático de tudo isso é que várias empresas de grande porte, em especial as multinacionais, têm utilizado com sucesso as secretárias como importante instrumento na modernização administrativa. Os objetivos podem ser atingidos com mais rapidez e facilidade quando a secretária trabalha para difundir novos modelos e processos. Assim, os administradores reconhecem não só a capacidade dessas profissionais em assimilar o novo, como também seu poder de difusão de informação e reconhecimento dentro da companhia. As secretárias, mais e melhor do que muitos executivos, aprenderam nos últimos dez anos que poder é conhecimento e informação; o melhor trabalho é o realizado em equipe; e que correr riscos é uma ferramenta de trabalho diário.

E há outro fator mercadológico que deve ser estudado com muita parcimônia em tempos de globalização. O enxugamento empresarial, hoje uma tendência mundial e irreversível, cujo principal objetivo é reduzir custos e espaços, significa que menor número de profissionais passará a executar mais tarefas. Com isso, as funções da secretária se acumulam: ela tende a evoluir, gradativamente, de simples telefonista bem instalada a gerente de produção da empresa, com uma série de novas atribuições. Isso reflete, instantaneamente, no bolso - melhor remuneração - e na vida pessoal - graças ao aumento da visibilidade profissional.

Esses são alguns dos motivos que estão levando o setor de serviços a expandir-se aceleradamente - é hoje o que mais cresce na economia. Somente no Estado de São Paulo existem atualmente cerca de 800 mil profissionais da área, dos quais meros 10% são homens e raros 2% estão sindicalizados. A cada dia, surgem novos tipos de empresa e novas oportunidades de trabalho nas velhas companhias que se reestruturaram. Há ofertas de contratação por tarefas, em tempo parcial, trabalho temporário, trabalho em casa, terceirização, etc. No universo dos superexecutivos, estão voltando à cena as antigas secretárias particulares. Por força de globalização - mãe de todas as competitividades -, o grau de exigência na seleção desses profissionais tem aumentado excepcionalmente.

Oferta e procura. "Diante desse quadro, a legislação trabalhista brasileira é que se vem mostrando lenta e incapaz de acompanhar a velocidade das mudanças no mercado de trabalho", ressalta Elisabeti. É o fator Brasil. Ela se refere às muitas secretárias que permanecem à margem da profissão, sem direitos garantidos e respeitados pelo simples fato de que a forma de contratação não está devidamente prevista em lei. Regulamentado desde 1985 (pela Lei nº 7.377), o secretariado passou por diversas mudanças na última década. Os 23 sindicatos estaduais da categoria e a Federação Nacional das Secretárias (Fenassec) têm trabalhado principalmente para atender às novas necessidades de seus representados. De um lado, implantando programas de treinamento e de reciclagem, orientando profissionalmente, assessorando na montagem de currículos e criando bolsas de emprego. Por outro, tentando incluir nos acordos coletivos firmados com o setor patronal medidas efetivas de proteção às profissionais contratadas de forma não-convencional pelas empresas. No próximo Summit (reunião de 180 países que possuem secretárias organizadas em associações ou sindicatos), a ser realizado neste mês na África do Sul, serão debatidos os vários ângulos da globalização econômica. Em pauta, a criação de uma Organização Mundial de Secretárias, a implementação de um código de ética internacional e de um dia internacional da secretária. Leida Maria de Moraes, presidente da Fenassec, garante: "Somos profissionais de e do futuro".

Desafio nacional. Uma secretária que se mantem atualizada com as idas e vindas do mercado pode receber salários bastante elevados. Nos Estados Unidos, a assistente de um executivo médio de uma multinacional, por exemplo, tem seus vencimentos batendo nos US$ 50 mil por ano, o que lhe permite investir na carreira e manter um bom padrão de vida. Na década de 50, o salário médio de uma secretária na América rondava os US$ 5,00 por hora; a média semanal era de 30 horas de trabalho, o que significava US$ 6,3 mil por ano. Uma realidade diferente da brasileira, é verdade, onde o salário médio não chega aos R$ 16 mil por ano. Mas, mesmo assim, trata-se de evolução inquestionável.

O grande problema de países como o nosso é que muitas questões trabalhistas são tratadas como se ainda estivéssemos vivendo em meados do século 20 (ou 19, em alguns casos). "Toda essa reestruturação por que passa o mundo dos negócios, e que está elevando a secretária a um nível intelectual sem precedentes, nada significa para as profissionais de Estados pobres como os do Nordeste, Norte e Centro-Oeste", afirma, categoricamente, Maria Lucina de Oliveira, 42 anos, assistente das direções administrativas e industrial da Ripasa, fábrica paulista de papel e celulose. Ela tem razão. Não se pode esquecer que nada, na Belíndia em que vivemos, é geral e irrestrito. A globalização economica é tema tão em voga nessas regiões do País quanto a física quântica. Sob todos os aspectos, mas principalmente os sociais, esse parece ser mesmo o grande desafio brasileiro para o próximo milênio.

Misturando os canais
Cai o manto do assédio sexual; as vítimas começam a reagir

A mudança de perfil da secretária na última década fez com que muitos tabus fossem quebrados no relacionamento entre patrão e funcionária. A diferença intelectual, antes verdadeiro abismo intransponível, dimimuiu radicalmente, o que garantiu ao executivo maior tranquilidade na hora de depositar confiança em sua assistente e delegar-lhe mais responsabilidade (decisão natural em uma era de abertura de mercado. Porém, essa aproximação trouxe à tona um comportamento social secular (e que estava prestes a se tornar norma em escritórios dos quatro cantos do mundo): o assédio sexual, antes protegido sob o manto do despreparo e da fraqueza psicológica das vítimas.

Segundo a revista norte-americana The Secretary, publicada pela Professional Secretaries International (PSI), organização especializada no assunto que reúne profissionais de todo o planeta, o assédio sexual ocorre mais por questões de poder e controle do que propriamente pelo sexo e está ligado ao fator psicológico de que "os homens dominam as mulheres e socialmente todos são ensinados dessa maneira". É bom lembrar que, no que diz respeito à dominação, o assédio sexual pode ocorrer com homens e mulheres; entretanto, por serem as mulheres mais numerosas na profissão e por terem os homens (ainda) a maioria dos cargos de chefia em repartições públicas e em empresas privadas, os grandes alvos desse tipo de, digamos, comportamento, são, de fato, as secretárias.

Cantadas e convites. Comportamento, nesse caso tem definição bastante difícil: pode ser definido como algo trivial que não traz maiores consequências, como um gesto, uma atitude, algumas palavras, e até uma ação mais comprometedora e forte que possa machucar, como, por exemplo, um abraço. É importante, porém, não confundir relacionamento afetivo, que se caracteriza pela reciprocidade, com assédio sexual. O que conhecemos popularmente por "cantada", "paquera" ou mesmo "caso" são atitudes costumeiras no convívio entre homens e mulheres, segundo a The Secretary, e devem ser cuidadosamente analisadas. Esses relacionamentos podem vir a se tornar assédio quando ocorrerem com insistência ou sem permissão ou incentivo de uma das partes.

Foi o caso de Heloísa B., secretária de Porto Alegre que, após meses recusando contundentes e ousados convites para jantar, resolveu valer-se dos artigos 61 e 146 do Código Penal e entrou com uma ação na Justiça contra o chefe. Ganhou a causa, mas perdeu o emprego. "Não trocaria uma coisa pela outra de jeito nenhum", afirma, enquanto preenche mais uma ficha de recolocação profissional.

Há vários tipos de assédio sexual, desde os mais leves até os mais agressivos e que causam danos físicos. Entre os exemplos mais comuns de comportamento inadequado (gestual, verbal ou escrito) estão as "cantadas" agressivas, a tentativa de compra de favores em troca de alguma coisa, abraços mais longos e apertados do que permite o costume do ambiente de trabalho, assuntos picantes ou íntimos, piadas com conotação sexual, convites ou propostas indecorosas.

Prevenir é o melhor remédio. As analistas da revista norte-americana são unânimes em afirmar que cuidados antes de aceitar o emprego podem resultar em vida mais longa no cargo. Desconfiar sempre de recrutamentos que exigem boa aparência ou uma determinada faixa etária é a primeira regra a ser seguida religiosamente pela secretária. Nesse caso específico, uma segunda providência deve ser tomada: saber por que a empresa faz tanta questão desses quesitos (talvez ela tenha, de fato, razões profissionais).

A segunda lei antiassédio diz respeito à apresentação. A secretária deve adequar-se física e aparentemente ao cargo que pretende ocupar. Como dizia a estilista francesa Coco Chanel, a mulher que se veste como mulher, assim será vista pelos que a cercam; a que se veste como profissional será tratada como uma.
Saber dizer não quando necessário é outro ponto importante na cartilha da secretária segura. Mais: ser assertiva quando perceber qualquer atitude indesejada. Rigor e contundência podem livrá-la de situações bastante embaraçosas. A última recomendação da revista é mais psicológica: evitar demonstrações de fragilidade (emocional, financeira ou profissional) no escritório. A parceria no ambiente de trabalho é saudável e pressupõe diálogo. Mas confidências e inseguranças não devem fazer parte do cenário empresarial.

"O assédio é um assunto muito delicado de se lidar e tornou-se mais comum do que se pode supor", afirma Maria Elisabeti, do Sinsesp. Segundo estimativas da PSI, em todo o mundo cerca de 1,5 mil casos de assédio sexual são registrados por ano. Mas o número de ocorrências é muito maior, se levarmos em consideração que mais da metade não é comunicada às autoridades.

As Ferramentas de Trabalho
O que está mudando no dia-a-dia das secretárias

Hoje Amanhã
Telefone Terminal de videoconferência.
Agenda eletrônica Personal Digital Assistant - PDA (equipamento que funciona como um pequeno banco de dados e possibilita, entre outros recursos, escrever à mão, com caneta óptica, em uma tela colorida de cristal líquido).
Máquina de escrever elétrica Microcomputador.
Malote Intranet ( espécie de Internet para grupos de trabalho capaz de conectar todos os micros de uma empresa e fazê-los conversar e transmitir dados simultaneamente).
Motoboy Rede mundial Internet.
Xerox e fax Scanner colorido de alta resolução ligado à Internet.